O preço da governança é a eterna vigilância – As práticas de stewardship desembarcam no Brasil

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Por Isabella Saboya

A atratividade de um mercado de capitais está atrelada à qualidade de sua regulamentação e supervisão, da governança das empresas e dos investidores. As boas práticas de governança precisam fazer parte da cultura das empresas.

O mercado de capitais brasileiro tem apresentado piora institucional desde 2010 quando houve uma malsucedida tentativa de melhoria das regras de listagem do Novo Mercado. É possível observar um aumento preocupante de operações societárias questionáveis, assim como ocorrido na década de 90. Ao contrário daquele período, a percepção atual é de baixa mobilização dos investidores institucionais em manifestar-se sobre atos potencialmente lesivos ao mercado. Talvez tenha ocorrido um efeito adverso em que a melhoria institucional do mercado nos anos 2000 tenha produzido aumento do universo de investimento desses agentes permitindo-lhes finalmente alguma espécie de atitude de “votar com os pés”, isto é, vender suas ações quando ocorrem práticas societárias que julgam danosas. Ou junte-se a isso o aumento de suas opções além-fronteiras com a permissão e crescente facilidade para se investir no exterior.  Importante esclarecer que essa liberdade de escolha é muito positiva para o mercado investidor já que a competição global pelo capital contribui para elevar a qualidade dos ativos locais. Mas o fato é que diminuiu a participação dos gestores nacionais nos movimentos que procuram proteger e melhorar o ambiente institucional do mercado acionário.

O aumento da passividade local conflita com a nova onda de governança nos mercados desenvolvidos: stewardship.

Ainda sem tradução no Brasil, stewardship é a governança dos investidores institucionais que, ao assumirem a gestão de recursos de terceiros, precisam cumprir o dever fiduciário pactuado com seus clientes. Investidores institucionais são stewards de recursos de terceiros, “tomam conta” dos investimentos alheios. Há duas décadas a expressão “corporate governance” era pouco traduzida no Brasil. Havia enorme estranhamento na tradução literal, pois se julgava que a palavra governança estaria associada apenas à administração doméstica dos lares. Hoje na primeira procura digital aparece “ato de governar, governo”, e o wikipedia vai direto para “governança corporativa”. Portanto, é uma questão de tempo para que o Brasil ache a tradução definitiva para stewardship.

A exemplo dos códigos de governança corporativa que proliferaram no mundo após a crise de 2001 (são mais de 100), já existe código de stewardship em 11 países. O do Reino Unido (The UK Stewardship Code, FRC – Financial Reporting Council), lançado em Julho de 2010 é o mais avançado em termos de divulgação e aderência. Conta com 300 signatários e um acompanhamento cada vez mais ativo do FRC em orientá-los sobre como se engajar efetivamente com as companhias investidas e como reportar essa atividade. O Brasil entra para esse time com o lançamento do código Amec de stewardship em Outubro desse ano e já com 12 aderentes entre os maiores gestores atuando no nosso mercado de ações.

Governança cria valor: o que era uma promessa incerta tornou-se realidade nos últimos 16 anos. O Código da Amec é mais um passo fundamental para fortalecer o mercado de capitais brasileiro nesse ciclo virtuoso que se iniciou em 2000 com o lançamento do Novo Mercado, seguiu com a Reforma da Lei das SA em 2001, o boom dos IPOs em 2007 e recrudesce nesse final de ano com o lançamento do Código Brasileiro de Governança Corporativa, elaborado com base no código do IBGC

A proposta do código de promover o senso de propriedade nos investidores institucionais e criar padrões de engajamento responsável é ambiciosa, porém fundamental para que o mercado acionário seja visto como uma fonte de financiamento a ser respeitada com o devido comprometimento pelas empresas nacionais, tal como estas respeitam os bancos comerciais e de fomento. A grande maioria das companhias abertas brasileiras ainda vê o investidor de Bolsa como o capital que “tem coração de lebre e perna de corça”, aquele sem compromisso, que passa como meteoro por suas vidas corporativas.

Desde o início do ano, a BM&F Bovespa vem promovendo intenso debate sobre revisão das regras do Novo Mercado. Ao levar suas propostas de mudanças de regulamento às companhias listadas no segmento, obteve a seguinte réplica constante: “meus investidores nunca mencionaram que tais regras seriam importantes”. Na primeira fase de audiência pública da reforma do Novo Mercado, de Junho a Setembro do ano passado, a BM&F Bovespa recebeu 39 manifestações, sendo 16 provenientes de companhias abertas, 10 de associações e entidades e apenas 6 vieram de investidores institucionais. Todos sabem que comprovadamente não existe vácuo de poder. A única visão que a Bolsa tem recebido das companhias é aquela presente no dia a dia das mesmas: a de controladores, diretores, advogados e outros prestadores de serviços corporativos. Não pode ser saudável ter a ausência da visão dos financiadores de longo prazo das companhias.

Dentre os 7 princípio do código Amec, destacam-se os de número 3 e 4:  ”Considerar aspectos ASG (ambientais, sociais e de governança) nos seus processos de investimento e atividades de stewardship” e “monitorar os emissores de valores mobiliários investidos”. A Aberdeen, maior empresa de gestão de recursos de terceiros do Reino Unido que tem R$19 Bn investidos em ações no país, aderiu ao código e já vem demandando posicionamento claro de suas companhias investidas em relação às questões-chave da reforma do Novo Mercado. Os investidores devem ir além e buscar a apreciação e deliberação formal dos conselhos de administração das companhias listadas no Novo Mercado sobre o tema. Determinadas matérias seriam até mais cabíveis de serem discutidas no âmbito da Assembleia, uma vez que afetam os acionistas mais diretamente. Se a admissão ao Novo Mercado foi matéria de conselho de administração, por que a votação sobre as mudanças propostas no regulamento do segmento não o seria?

Se muitos investidores institucionais tinham dúvidas sobre como cumprir os princípios do código de stewardship, agora está claro: a reforma do Novo Mercado é a grande primeira prova de fogo de boas práticas de stewardship no Brasil. É preciso que os grandes investidores demandem que os conselhos de administração das companhias do Novo Mercado deliberem sobre como tais companhias votarão na reforma do segmento em Junho desse ano e façam constar em ata pública sua decisão. Essa é a transparência que o mercado espera das companhias listadas no mais alto nível de governança corporativa da Bolsa. E essa é a linha de atuação esperada para os que adotam práticas de stewardship.

Isabella Saboya tem 24 anos de mercado financeiro e é conselheira de empresas de companhias abertas