Samarco ré, Petrobras vítima

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Por Carlos Henrique Abrão e Érica Gorga

As autoridades brasileiras finalmente resolveram admitir que companhias podem ser responsabilizadas pelos prejuízos causados no descumprimento das obrigações legais. A Advocacia Geral da União ingressou com ação civil pública contra a empresa Samarco e suas controladoras Vale (nacional) e BHP (australiana), visando a indenização de R$ 20 bilhões pelos incalculáveis prejuízos causados pela lama tóxica derramada na bacia do Rio Doce, de gravíssimas consequências para o meio ambiente e as pessoas que sofreram danos materiais, morais e à própria saúde.

A demanda que pleiteia o ressarcimento se baseia na Lei 7.347/1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens de valor artístico, histórico, turístico e paisagístico.

A ação civil pública é a versão brasileira da ação de classe americana (class action). No entanto, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a ação civil pública não se aplica apenas ao ressarcimento de danos ao meio ambiente. Esqueceram as autoridades brasileiras que, na sequência da Lei 7.347/ 1985, foi aprovada em 1989 a Lei 7.913, que prevê a ação civil pública por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, ou seja, no mercado de ações. A mencionada lei remete, em seu artigo 3.°, aos trâmites da propalada Lei 7.347.

Por isso, no Direito brasileiro, tanto danos causados ao meio ambiente quanto aos investidores do mercado de ações são tutelados de modo equivalente, por idêntica infraestrutura jurídica.

Supondo que as autoridades governamentais brasileiras agissem de maneira minimamente coerente, a pergunta que não quer calar é: por que não propuseram ação civil pública contra a Petrobrás pelos prejuízos causados aos investidores?

Evidentemente, a Petrobrás não causou diretamente a morte de pessoas, como fez a Samarco, mas causou imensos danos patrimoniais, estimados em mais de R$ 40 bilhões perdidos em esquemas de corrupção – dos quais R$ 6 bilhões já foram contabilizados no seu balanço. As consequências da macrocorrupção sistêmica atingiram a economia do País, culminando na retração de mais de 4,5% do PIB.

Não há dúvida de que, nos termos do artigo 1.º da Lei 7.913, a Petrobrás é responsável pelos prejuízos provocados por operações fraudulentas e omissão de divulgação de informações relevantes aos investidores.

Trocando em miúdos: a Petrobrás mentiu e enganou investidores e justamente por isso está sendo processada por investidores internacionais que adquiriram seus títulos (ADRs) na bolsa de Nova York. Enquanto pessoa jurídica, fraudou demonstrações financeiras, apresentando às autoridades reguladoras do mercado nacional (Comissão de Valores Mobiliários, a CVM) e do mercado americano (Securities and Exchange Commission, a SEC), como legítimas, informações enganosas e eivadas de erros.

A despeito disso, as autoridades brasileiras vêm tratando a Petrobrás como vítima, como se perante o Direito brasileiro uma pessoa jurídica pudesse apenas beneficiar-se de direitos e não tivesse obrigações legais para com quem nela investiu.

Essa miopia que ainda persiste no Brasil difere diametralmente da visão do mercado americano, em que dezenas de ações resultarão em indenizações extremamente elevadas a ser pagas pela petroleira. Já o investidor brasileiro, além de desprotegido, deverá pagar a conta pela segunda vez, quando sair a decisão da Corte americana homologando acordo para ressarcir os prejuízos dos investidores estrangeiros.

A considerar o raciocínio que encobre a realidade, também poderíamos concluir que a empresa alemã Volkswagen, que perpetrou fraude descoberta nos EUA e praticada também no Brasil, seria mera vítima, a fim de não responsabilizá-la pelos danos causados a seus acionistas pela adulteração de equipamentos medidores da emissão de poluentes.

Notam-se, entretanto, na esfera administrativa, multas milionárias lavradas pela Secretaria de Meio Ambiente e pelo Ibama contra as empresas Volkswagen e Samarco. No caso da Petrobrás, contudo, a CVM lava as mãos, sem nenhum enquadramento legal adequado dos ilícitos. No exterior, a SEC e o Departamento de Justiça dos EUA investigam a estatal Petrobrás para proteger os minoritários, diante do dever de prestar informações fidedignas, relacionadas aos fatos relevantes que possam impactar o preço de negociação dos seus títulos.

Os investidores brasileiros – as vítimas reais que depositaram patrimônio em tal companhia – permanecem sem perspectiva de indenização financeira, em desrespeito às normas brasileiras, que estipulam direito a ressarcimento de prejuízos aos investidores em analogia ao caso Samarco. Urge que a celebrada Operação Lava Jato reconheça que a estatal petroleira é responsável pelos danos que causou a seus investidores em conformidade com as leis que regem o mercado de capitais nacional. O proveito econômico dos valores apreendidos na Lava Jato não deve ser revertido em benefício da União, que é acionista controladora da Petrobrás e abusou do poder de controle, nos termos do artigo 117, § 1.º, “d”, da Lei das S.A., ao eleger pessoas inaptas para o seu corpo dirigente. Os valores têm de ser destinados aos acionistas minoritários lesados, por meio de ação civil pública.

As autoridades brasileiras precisam ser coerentes: ou todas as companhias são infratoras pelos danos que causam ou todas são vítimas, pois não se pode tolerar tamanha discrepância na aplicação das mesmas leis. Sem o ressarcimento dos acionistas minoritários prejudicados, a desconfiança e a insegurança prevalecerão no mercado, deixando o investidor de investir, acelerando a espiral descendente atual da economia.

 

Carlos Henrique Abrão, Doutor em Direito pela USP, é Desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo. Érica Gorga é Pesquisadora Associada na Yale Law School, tendo atuado como perita da ação coletiva contra Petrobras nos EUA. A Dra. Érica Gorga foi professora da FGV Law.

Artigo originalmente publicado no Estadão em 31 de dezembro de 2015. Reproduzido com autorização dos autores.