Retrocesso nas Estatais

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As sociedades de economia mista, cujas origens no século XX remontam às escolhas sociais dos brasileiros à luz de um Estado com grande participação na atividade econômica, são parte integrante e relevante do nosso mercado de capitais. Goste-se ou não, é uma escolha legítima e que deve ser respeitada. Cabe aos gestores públicos e demais partes interessadas encontrarem o modelo que dê eficiência à consecução dos objetivos públicos inseridos nesta escolha.

A sociedade de economia mista atende bem a essa realidade. Oferece-se aos investidores privados a oportunidade de se tornar sócio do Estado em uma atividade lucrativa e que simultaneamente busca atingir interesses públicos previamente definidos em lei. Dessa forma, é possível expandir os investimentos públicos contando também com recursos privados e, ao mesmo tempo, introduzem-se práticas de transparência e de governança que melhoram a eficiência do ente sob o controle estatal.

Na teoria parece funcionar bem.

Na prática, entretanto, o que vimos nos últimos tempos foi uma sequência de desastres na gestão deste modelo societário, o que acabou destruindo valor dos investimentos público e privado.  Há perda na capacidade de atender aos anseios sociais e, de quebra, a credibilidade do mercado de capitais brasileiro é corroída. Os prejuízos impostos aos investidores da Petrobras e da Eletrobrás nos últimos anos, por exemplo, tomaram dimensões épicas, nas casas das centenas de bilhões de reais. Todo o discurso de transparência, de boa governança, de escrutínio e de boas perspectivas financeiras foi destruído por uma combinação de interferência política, de corrupção e de péssimas decisões nos negócios.

Na busca por culpados para esses desastres, está a complacência. Foram complacentes os administradores honestos, mas que se calaram diante de decisões claramente equivocadas (quando não ilegais). Foram complacentes os funcionários que “cumpriram ordens”, mesmo sabendo que determinadas decisões não eram nem racionais, nem sustentáveis. Foram complacentes os bancos que financiaram projetos megalomaníacos e com taxas de retorno módicas, acreditando que eram importantes demais para que fracassassem. Foram complacentes os investidores que compraram títulos de empresas que não tinham controles ou governança adequados à escala dos projetos em que investiam. Foram complacentes os reguladores setoriais, que aceitaram ou compactuaram com quebras de contratos, com operações ilegais e com a destruição de mercados competitivos. Foram complacentes os reguladores do mercado de capitais, quando aceitaram emissões suspeitas ou demoraram em investigá-las. Em suma, fomos todos complacentes.

Depois da devastação, entramos num ciclo positivo, de se “colocar a casa em ordem”. As empresas mais afetadas pela tormenta política receberam administradores sérios e competentes, que estão se esforçando para mudar a direção destes transatlânticos. A Petrobras coloca em curso uma nova estratégia, buscando tornar-se mais focada e, portanto, “administrável” – enfatizando suas vantagens competitivas e fomentando a criação de mercados competitivos. A Eletrobrás se insurge contra indicações políticas para suas subsidiárias e embarca num processo significativo de redução de quadros.

Em paralelo, vemos fortes sinais de retomada nos processos de privatização. Ativos das próprias estatais foram e estão sendo colocados à venda e as aberturas de capital de estatais como a BR Distribuidora, o IRB e a Infraero são consideradas. O Governo de São Paulo planeja vender sua empresa de geração de energia elétrica, enquanto a prefeitura anuncia um plano ambicioso de venda de ativos, incluindo o icônico Anhembi.

Investigações robustas são executadas pelos órgãos de supervisão. O TCU, a CGU, o MP e CVM, dentre outros, possuem dezenas de processos em aberto tendo como alvo as sociedades de economia mista e/ou seus ex-administradores.

Um dos primeiros e mais relevantes passos nessa “reação” foi a decisão da CVM, em 2015, de punir a União Federal por abuso no exercício do poder de voto na assembleia geral da Eletrobrás em 2012. Com um voto magistral proferido pela então diretora Luciana Dias, o Colegiado da CVM concluiu, por unanimidade, que a União Federal prejudicou a Eletrobrás e os seus acionistas, ao votar pela adesão às regras da então Medida Provisória 579. A decisão não apenas causou prejuízos econômicos e contábeis bilionários à companhia, mas ainda determinou que ela não pudesse pleitear, em juízo, a revisão dos valores que lhe seriam devidos, como fizeram praticamente todas as demais geradoras de energia fora do controle da União.

E eis que os avanços na governança e na viabilidade das empresas de economia mista, de repente, encontraram um contragolpe do Brasil velho, que as atingiu bem no coração.

Em junho de 2017, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“Conselhinho”), órgão de composição paritária, com 4 (quatro) conselheiros indicados pela União e 4 (quatro) conselheiros indicados por entidades do mercado de capitais, reverteu esta decisão, pelo apertado placar de 5×4, contando com o voto decisivo da presidente do órgão, indicada pelo Ministério da Fazenda. Em outras palavras, prepostos da ré não apenas participaram do julgamento, mas definiram o placar final, mediante o uso de voto de qualidade para absolvê-la da acusação.

A decisão do Conselhinho foi ao mesmo tempo um golpe na CVM, nos investidores, no Estado Brasileiro e, por fim, no próprio Conselhinho.

A CVM viu cair por terra seu considerável esforço para dar um basta no uso político das companhias estatais de capital aberto. Por mais que a decisão tenha um caráter também simbólico (afinal, o Tesouro pagaria, em última instância, para ele mesmo), ela indicava um claro limite naquilo que o governo poderia fazer para prejudicar as empresas pertencentes ao Estado e que contam com sócios privados. Ela dava um direcionamento sobre a importância de se atentar especificamente para o “interesse público” que levou à criação de uma empresa estatal, interpretando-o de maneira restrita, como deve ser. Era o prenúncio do fim de atitudes como o subsídio de preços e tarifas para segurar a inflação, mas que na maioria das vezes limitava-se ao interesse político ou eleitoral. Esse esforço voltou à estaca zero com a decisão do Conselhinho, que, no limite, sinalizou um “liberou geral”.

Os investidores são a maior e mais imediata vítima dessa decisão. A leitura ampla do Artigo 238, dada pelo voto vencedor no Conselhinho, torna praticamente impossível colocar freios à sanha intervencionista de governos e políticos, que enxergam nas empresas estatais (e notadamente nas sociedades de economia mista) verdadeiras “minas de ouro” para objetivos pouco republicanos, desde os mais “honestos”, numa visão benevolente de “beneficiar a população” aos mais criminosos, mascarando seus atos por trás de más decisões de gestão.

A mensagem dada pelo Conselhinho aos investidores é para que não invistam em empresas estatais. Afinal, dada a interpretação do órgão, não há limites para a atuação do acionista controlador, mesmo que em detrimento da sustentabilidade da companhia. O governo volta a ser um sócio no qual não se pode confiar, uma vez que detém o salvo-conduto para fazer o que bem entender com o patrimônio privado que lhe é confiado pelos acionistas minoritários. Ainda que se morra de admiração por determinado governo, a democracia implica que o mandatário pode mudar a cada quatro anos e, com essa mudança, ninguém sabe dos escrúpulos dos sucessores. Como avaliar o valor presente de uma empresa com essas características, principalmente conhecendo-se o histórico?

Isso nos leva aos danos causados ao próprio Estado Brasileiro. No momento em que este artigo é escrito, saem nos jornais notícias sobre planos para a abertura de capital de pelo menos três estatais federais: o IRB, a Infraero e a BR Distribuidora. Pergunta-se quem, em sã consciência, pagaria o preço justo por ações de uma empresa na qual o controlador poderia agir impunemente, conforme o voto vencedor do Conselhinho indicou? Existe um grande risco de que as aberturas de capital dessas empresas possam ser prejudicadas ou mesmo impedidas pela decisão do Conselhinho. Neste sentido, trata-se de um enorme tiro no pé dado pelos membros do Conselhinho que votaram nesta direção.

E isso nos remete aos danos causados ao próprio órgão. O Conselhinho vinha numa toada admirável de reformulação de seus processos internos e que levou a uma significativa redução dos prazos de seus julgamentos assim como no aumento da estrutura alocada ao órgão. É um trabalho admirável, cujos efeitos já vêm sendo sentidos pelos participantes de mercado.

A decisão no caso Eletrobrás trouxe uma mancha sobre todo esse trabalho. Além da visão míope e obsoleta que permeou o voto vencedor, o que mais chamou a atenção foi o processo de votação. O placar de 5×4 já seria suficiente para lançar dúvidas sobre o resultado, mas o fato de ter sido obtido através do voto de qualidade proferido pela representante da Fazenda Nacional mostrou uma falha gravíssima na governança e, portanto, na credibilidade do órgão.

Como pode o réu ser juiz e ainda proferir o voto determinante? Estamos falando de uma situação clara de conflito de interesses. Ainda que se admitisse o voto dos conselheiros representantes de autarquias como a CVM e o Banco Central, dado seu caráter independente, não se poderia admitir que os representantes da Fazenda Nacional pudessem votar nessa matéria. Além disso, é sintomático que os conselheiros indicados pelo setor público, com a corajosa e honrosa exceção do indicado pela CVM, votaram a favor do recurso da União. Seria mera coincidência?

É verdade que dada a posição do representante da CVM, o julgamento teria tido outro resultado se não fosse o voto equivocado dado pelo conselheiro indicado pela Abrasca, ao absolver a União. A reflexão importante que se coloca é, entretanto, sobre a governança do Conselhinho. Enquanto não for estabelecida uma regra clara[1] de abstenção nos casos onde há conflitos de interesse, o órgão seguirá sendo visto como uma longa manus do Governo Federal, incapaz, portanto, de estabelecer limites a este quando age como ente regulado (por exemplo, como controlador de empresas abertas). A decisão em tela maculou os avanços recentes e nos remeteu a um Brasil velho, onde o governo tudo pode e aos cidadãos, resta curvarem-se a ele.

Ainda que tenhamos tratado de um retrocesso gigantesco, vamos terminar com uma nota positiva. No mesmo dia do julgamento, a CVM publicou seu Comunicado 07/2017[2], que conclui com a seguinte frase:

A CVM respeita a instância decisória do CRSFN e o resultado final do julgamento, que seguiu o devido processo legal, no entanto, reafirma o posicionamento de seu Colegiado à época do julgamento em primeira instância.

Em outras palavras, a CVM dá aqui mais uma demonstração heroica de buscar a preservação do regramento previsto na legislação societária, impondo limites aos danos causados pelos controladores estatais. Ela aponta que na eventualidade de um caso similar lhe ser novamente submetido, a decisão será a mesma, ou seja, a punição. Na sua visão, portanto, a decisão do Conselhinho não cristalizou um entendimento definitivo. O assunto voltará à análise, espera-se, com uma composição diferente do órgão revisor e com mais maturidade no tratamento de situações de conflitos de interesse podendo, portanto, ser finalmente confirmada a decisão correta.

O enquadramento dos abusos dos controladores das estatais não estaria assim enterrado, apenas adiado. Torcemos para que seja o caso e que este retrocesso vivido no mês de junho se revele simplesmente temporário.

 

[1] Em tese tal regra já existe, no Regimento do próprio CRSFN, mas pelo visto não funciona: Art. 18. Os Conselheiros e o Procurador da Fazenda Nacional estarão impedidos de participar do julgamento quando tenham: (…) II – interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto na causa;´´ esclarecendo posteriormente que, §3º Considera-se existir interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto, nos casos em que o Conselheiro ou o Procurador da Fazenda Nacional encarregado de se manifestar nos autos tenha percebido, entre a data do julgamento e os dois anos anteriores à interposição do recurso ou do pedido de revisão, remuneração do sujeito passivo ou de seu representante na causa. §4º O impedimento ou suspeição deverão ser declarados pelo Conselheiro ou pelo Procurador da Fazenda Nacional…

[2] http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20170628-3.html.