A Maioria da Minoria (ou O Papel Aceita Qualquer Coisa)

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A Amec participou em Dezembro do lançamento de uma importante parceria entre a CVM e a Universidade de Columbia. O objetivo é permitir um intercâmbio de informações que propicie a continuidade do desenvolvimento de nosso mercado de capitais. A parceria é fruto do esforço do regulador em fomentar a educação financeira e a evolução regulatória, em linha com as melhores práticas internacionais.

Um dos aspectos discutidos foi a proteção dos investidores em casos de reestruturação societária. O tema é velho conhecido dos associados da Amec e constitui talvez uma das maiores ameaças aos investidores em ações no Brasil. Temos assistido recorrentemente operações que logram transferir valor entre diferentes classes de acionistas – normalmente dos minoritários para os controladores – sob o manto da legalidade formal oferecida pelas interpretações mais frias da legislação societária. Ainda que nossa lei mereça consertos nessa área, aprendemos com os professores de Columbia que há muito a ser feito para proteger os investidores sem precisar mexer na lei.

Em primeiro lugar, ficou claro que é cada vez mais difícil – para não dizer impossível – julgar a legalidade e a correção de determinada operação sem analisar seu mérito. Tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a fórmula escolhida pelos reguladores e autorreguladores tem sido instituir uma rede de formalidades que inclui processos aparentemente diligentes, mas que não conseguem atingir seu objetivo efetivo de tratar com justiça cada uma das partes. Ao final do processo, isso tem permitido aos executores de transações societárias mais “agressivas” se  proteger através do atendimento de formalidades. Assessores, pareceres, comitês e outras ferramentas têm sido usados para reforçar as transações anunciadas. No papel, tudo funcionaria com primor para impedir abusos. Na prática, tornam-se verdadeiras cortinas de fumaça que acabam referendando os abusos.

A CVM esforçou-se para coibir estes problemas com a emissão do Parecer 35, que entre outros procedimentos recomenda a criação de comitês de fato independentes, que “discutam” as relações de troca em casos de transações societárias envolvendo partes relacionadas. Por mais que tenha sido uma iniciativa bem intencionada – e que impactou positivamente muitas transações – ela não fugiu ao problema global nessas situações: acabou referendando abusos significativos. Nem mesmo denúncias de conselheiros independentes sobre a falta de diligência e dever de lealdade desses comitês conseguiram impedir transações ou mesmo responsabilizar qualquer um de seus membros.

Os professores de Columbia reportaram que tanto o sistema judicial americano (notadamente de Delaware), como a SEC – órgão regulador do mercado de capitais – têm se debruçado cada vez mais na essência das atividades desses assessores, incluindo não apenas conselheiros e comitês, mas também avaliadores e emissores de fairness opinions. Os documentos emitidos por esses ‘especialistas’, antes considerados pelo regulador apenas em seus aspectos formais, agora são analisados na sua essência, buscando sinais que indiquem lesão a qualquer uma das partes. Trata-se de uma verdadeira revolução na abordagem regulatória, principalmente em se tratando de um país que tem em alta estima o conceito do business judgment rule – ou seja, a ideia de que a essência das decisões de negócio não deve ser punidas mesmo quando trazem prejuízos aos acionistas, dado que os administradores tem o direito de errar. A nova abordagem sugere que, como diz o ditado, errar é humano, mas “herrar demais é deshumano”. Ponto interessante para reflexão do nosso regulador, que historicamente também tem demonstrado resistência em emitir opiniões sobre o mérito desses laudos e pareceres.

Vale ressaltar que no Brasil os laudos e pareceres possuem importante função prevista em lei: regulação e autorregulação. Um laudo de avaliação, por exemplo, é a única defesa do acionista em relação a uma empresa que desista de fazer parte de Novo Mercado. Se o laudo puder ser ‘influenciado’ de maneira a não oferecer uma proteção efetiva, todas as demais proteções do Novo Mercado vão por água abaixo. Como o papel aceita qualquer coisa, e por vezes a zona cinzenta é demasiadamente ampla, é fundamental que esses laudos reflitam a realidade e que aqueles que não o fizerem sejam exemplarmente rechaçados.

Outro conceito importante discutido nesse evento foi o da maioria da minoria. Em transações conflituosas, a melhor maneira de garantir sua correção é dar o poder decisório àqueles que não estejam diretamente envolvidos no negócio. Ou seja, aqueles que não apresentam benefícios particulares – para utilizar a tão batida expressão de nossa lei. É bem verdade que a legislação brasileira já sugere esse caminho. É mais verdade ainda que ele tenha sido reforçado por ocasião da decisão da CVM no caso Tractebel, que definiu de maneira bastante precisa casos de impedimento de voto do acionista controlador. Mas claramente o que vimos até agora não é suficiente.

Nas palavras do Professor Robert Jackson, para que o conceito de maioria da minoria atinja seu objetivo, ele precisa ser tratado de maneira cristalina. Se algum acionista direta ou indiretamente interessado no negócio conseguir participar desta deliberação, macula de forma irremediável o mecanismo – e passa a jogar contra (defeat the purpose) seus próprios objetivos. Não apenas não se aufere o resultado desejado, mas ainda por cima serão referendadas falsamente as conclusões da transação.

Ainda estamos longe dessa realidade imaculada da maioria da minoria. Em situações recentes, acionistas foram autorizados a participar de deliberações nas quais claramente tinham interesses conflitantes com a companhia e/ou com os demais acionistas. Ainda que fossem contrapartes ou de outra forma beneficiários da deliberação, puderam emitir seus votos por diversas razões. Em um caso, o controlador foi impedido de votar com suas ações ordinárias, mas autorizado a votar com as preferenciais que detinha, como se de fato fossem duas pessoas diferentes. Em outra situação, um ente estatal claramente interessado nas consequências políticas de determinada decisão desastrosa para a companhia não foi impedido de votar.

Hoje mesmo vivemos reestruturações anunciadas nas quais algumas das partes possuem feixes de interesses claramente divergentes da empresa listada – e não está claro se poderão participar de suas deliberações. Aliás, a mera incerteza sobre isso já demonstra como nosso mercado de capitais precisa evoluir. Parte dos acionistas controladores são vendedores de ativos supostamente sobrevalorizados para a companhia. Outra parcela é beneficiária de assunções de dívidas relevantes. Por fim, parte dos acionistas controladores é credora, tendo maior benefício pela recuperação de seus créditos do que pela valorização das ações.

Situações assim demandam uma ação forte e tempestiva do regulador para que não seja maculado o princípio da maioria da minoria.

Felizmente, este final de 2013 trouxe uma decisão muito auspiciosa. A CVM decidiu, a respeito de uma reestruturação de 2011, que determinado acionista que na prática fazia parte do grupo de controle não poderia ser contabilizado como se minoria fosse. Por mais óbvio que tal fato possa parecer aos leigos, a decisão configura-se como um importantíssimo marco jurídico em nosso mercado de capitais.

Claro que permanecem desafios. No caso mencionado acima, a punição ao acionista que violou o conceito da maioria da minoria foi uma multa de 0,03% do valor da oferta pública em questão. Se o voto deste acionista evitou um aumento de, digamos, 10% para que a oferta lograsse seu objetivo, podemos dizer que o delito compensou.

Assim, o desafio hoje do nosso mercado de capitais é não apenas esmiuçar a essência das transações conflituosas, mas fazê-lo de forma tempestiva e efetiva, para que os investidores tenham a tranquilidade de saber que, se comprarem 1% de determinada companhia, terão 1% de seu valor.