Para que servem os laudos?

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Já exploramos tangencialmente nesse espaço a questão dos laudos de avaliação (“A Maioria da Minoria”, dez/13, e “Simples Assim”, maio/14). É chegada a hora de atacarmos o assunto de frente.

Nos anos 90, os ativistas de mercado clamavam por parâmetros básicos que atestassem que determinados eventos societários ocorressem em termos justos para todas as partes. Isso envolvia algumas questões de direito (por exemplo, o tag along), outras de rito (garantindo que os acionistas pudessem de fato escolher, sem a pressão de uma espada sobre suas cabeças), e outras ainda de valor.

Essa preocupação foi incorporada na nossa legislação societária em vários momentos – notadamente pelas leis 9.457, de 1997, pela 10.303, de 2001 e pela 11.941 de 2009. O termo “valor justo” aparece 3 vezes na Lei 6.404 emendada. “Valor de Avaliação” aparece 2 vezes. Os termos “valor econômico” e “preço justo”, uma vez cada. Ou seja, cada um dos movimentos de atualização da legislação societária procurou incorporar a noção de que determinados atos precisam ser pautados pelo equilíbrio entre as partes, de uma maneira ou de outra, refletido em um preço justo.

E a forma de obtenção deste preço justo leva aos laudos de avaliação. O termo “laudo” aparece 13 vezes na lei, sendo talvez metade delas advindas da redação original, e o restante das emendas. A lei toca ainda na responsabilidade dos avaliadores, o que sugere uma elevada importância para o tema.

Mas infelizmente não é o que acontece na prática. Uma pesquisa aos julgados da CVM nos últimos anos não encontra sequer uma condenação transitada em julgado de avaliadores, administradores ou controladores por conta de avaliação mal feita (na verdade, houve uma ‘advertência’). Ou nossas avaliações são pristinas, ou temos um sério problema de enforcement.

A experiência prática dos investidores sugere a segunda opção. A Amec tem identificado em profusão situações nas quais laudos imprestáveis foram utilizados para embasar transações societárias ou lançamentos contábeis relevantes. Uma breve lista das situações encontradas inclui:

Problemas com premissas

  • Premissas inconsistentes com a realidade de mercado ou da companhia;
  • Expectativas de crescimento que variam de nulas a exuberantes e às vezes infinitas;
  • Premissas contrárias a outras divulgadas pelo próprio avaliador;
  • Sub- ou Sobre- avaliação dos investimentos;
  • Ignorância deliberada de riscos ou contingências;

Problemas metodológicos

  • Projeções de perpetuidade pelo topo do ciclo de margens;
  • Margens e retornos fundamentalmente diferentes do histórico, sem razão aparente;
  • Dupla contagem de caixa ou dívida;
  • Avaliação de ativos semelhantes por metodologias diferentes;

Problemas de transparência

  • Disclaimers que eliminam a responsabilidade do administrador;
  • Divulgação errada ou incompleta da remuneração dos avaliadores;

Problemas éticos

  • Uso sem questionamento de premissas dadas pela parte interessada
  • Condicionantes colocadas aos avaliadores (ie. determinação prévia do resultado da avaliação)

A lista poderia ser bem maior. Mas ela já ilustra a quantidade e a diversidade de problemas que têm sido apresentadas aos investidores. E tudo isso sem que qualquer um desses casos tenha se tornado um problema para os avaliadores ou seus contratantes.

O resultado é que muitas das normas inclusas no nosso ordenamento societário caem no vazio, pois podem ser contornadas por laudos que sejam encomendados para dar um determinado resultado. E os avaliadores fazem o possível para contornar a eventual responsabilização, através de disclaimers cada vez mais elaborados. Alguns deles, dizem basicamente que “esse resultado é fruto direto das premissas que foram fornecidas pela administração, e nós não podemos responder por nada do que esteja aqui”. A vingar (como tem vingado) este tipo de atitude, os laudos de avaliação tornam-se meramente belas planilhas, com o logotipo do avaliador, que são construídas para referendar valores já previamente determinados. Trata-se de um aluguel de planilha.

A CVM bem que tem tentado coibir os abusos. Em 2002, editou a Instrução 361, que trouxe um nível inédito de detalhes sobre as normas que um laudo de avaliação deve seguir. Questões que deveriam ser óbvias, mas que viraram brechas para fazer as contas fecharem. Na mesma linha foi o Parecer de Orientação 35, de 2008, que reiterou as responsabilidades dos assessores com relação aos critérios de avaliação e à sua transparência. Infelizmente, nenhum dos dois instrumentos conseguiu fechar o cerco sobre as avaliações distorcidas. E em 2007 ensaiou um movimento para esmiuçar a essência dessas avaliações, em decisão de processo sancionador. Mas infelizmente parou por aí.

As práticas internacionais conseguiram maior sucesso na obtenção de avaliações justas. No mercado estadunidense, por exemplo, a lisura das avaliações é garantida por uma cultura altamente litigiosa, e uma especialização das cortes que determina diretamente uma análise da essência da avaliação. É a análise conhecida como entire fairness, e temida por todos os participantes do mercado. Para evitá-la, a prática mais comum tem sido a construção de processos de governança dessas avaliações que garantam que as decisões serão tomadas de maneira justa por todos os acionistas não interessados. Tratamos desse assunto há alguns meses, quando falamos sobre a maioria da minoria. E, como dizíamos, a pureza do conceito é fundamental para sua utilidade: se essa minoria estiver contaminada por partes interessadas na transação, ela macula o processo. Nas cortes de Delaware, isso leva à análise de entire fairness, na qual o julgador entra no mérito da própria avaliação.

Por aqui, infelizmente esses controles não funcionam. Como vimos em operações societárias recentes, a maioria da minoria é recorrentemente maculada por partes interessadas – que através de contorcionismos jurídicos terminam por negar o óbvio. Até mesmo os comitês independentes, igualmente inspirados no common law, e que a CVM importou através do Parecer de Orientação 35, mostraram-se de pouca valia, já que em várias situações encontraram formas de justificar suas posições alinhadas aos acionistas controladores. Isso quando a independência não era “para inglês ver”. Não faltaram casos de comitês formados por pessoas com vínculos ao controlador. E tampouco se tem notícia de caso nos quais os membros desses comitês tenham sido responsabilizados, ainda que os resultados fossem notadamente injustos, ou mesmo objeto de protestos de conselheiros independentes.

É hora de refletirmos sobre as consequências desta realidade.

Transações têm sido executadas nas quais o valor é transferido de um grupo de acionistas para outro, “legitimadas” por laudos tendenciosos. E as proteções esperadas do Novo Mercado seguem ameaçadas, uma vez que um controlador pode determinar a saída da companhia do segmento através da simples aprovação em assembleia de um laudo de avaliação – assembleia na qual ele vota! Se os laudos puderem dar qualquer resultado, fica fácil demais contornar as proteções do Novo Mercado.

Existem duas maneiras – não excludentes – de se resolver este problema. O primeiro é uma postura de supervisão regulatória que avoque para si a responsabilidade de inibir os casos mais atrozes de laudos enviesados. Uma supervisão que valorize o efetivo conceito da maioria da minoria e puna administradores e avaliadores que não observarem seus deveres fiduciários.

Ao mesmo tempo, cabe aos participantes do mercado de capitais autorreflexão crítica, devendo se perguntar se a situação atual é sustentável. Seria a hora de seguirmos o exemplo inglês, e submeter os instrumentos de avaliação a um processo de autorregulação, inibindo assim as ‘encomendas’ de resultado e as isenções de responsabilidade nas letrinhas miúdas dos disclaimers. É muito bom ganhar dinheiro com a operação A ou a operação B. Mas se esta atitude individualista perdurar, os danos permanentes ao mercado mais do que compensarão os ganhos pontuais.

Assim mataremos a galinha dos ovos de ouro.