Entrevista Regis Abreu: Controladores foram historicamente privilegiados no Brasil

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Com longa atuação na indústria de gestão de ativos, Regis Abreu, Vice-Presidente da Amec, em entrevista exclusiva ao Panorama Amec, transmite visão histórica sobre a evolução do mercado de capitais e da Bolsa. Para explicar o contexto do surgimento do Novo Mercado, o gestor e fundador da Tagus Investimentos, explica como o processo de privatizações retirou os direitos dos acionistas minoritários. O objetivo era incentivar a privatização de estatais como a Vale, Telebrás, entre outras.

Já nos anos 2000, com a oportunidade de se incentivar a ampliação do mercado de Bolsa, a antiga Bovespa promoveu uma série de mudanças, especialmente com o advento do Novo Mercado. Foi então que veio o primeiro boom de IPOs entre 2003 e 2008, com a economia conduzida por Henrique Meirelles. A crise de 2008 provou uma depuração do grande número de companhias que tinham aberto capital em Bolsa.

Um dos fundadores da Amec e hoje decano na Diretoria, Regis vivenciou toda a evolução do mercado que desemboca no contexto atual de uma segunda safra de IPOs. Apesar de todo o avanço, o gestor aponta que a legislação e o enforcement avançaram pouco na defesa dos direitos dos minoritários. Confira a seguir a entrevista na íntegra:

Poderia explicar qual era o contexto da evolução do mercado de capitais antes do Novo Mercado?

Regis Abreu, da Tagus Investimentos. Foto: Divulgação.

O Novo Mercado nasceu em 2001 e a primeira empresa que fez IPO aconteceu somente em 2003. Para entender melhor o contexto da época, é importante retomarmos a evolução histórica anterior. Ocorreram muitas mudanças na legislação na década de 90, que retiraram direitos especialmente das ações ordinárias para incentivar o programa de privatizações. Foram mudanças que tiveram o objetivo de acomodar as demandas dos projetos de privatizações e favorecer os novos controladores.

Como a Bolsa foi se transformando no sentido de incluir maior número de empresas e maior diversidade de setores?

Nos anos 80 e 90, as pessoas eram acionistas de ações preferencialistas de estatais de péssima governança, e não tinham nenhum envolvimento ou acesso às empresas. Não havia política de governança nessas empresas, que eram as líderes da Bolsa. Nos anos 2000, houve a convergência de duas forças. As próprias empresas privatizadas, a exemplo da Vale, começam a avançar na direção de uma melhor governança, como uma maneira de valorizar o próprio ativo. E a Bovespa viu uma oportunidade de incentivar o desenvolvimento do mercado.

Poderia explicar um pouco melhor como foi desenvolvido esse projeto de ampliação e modernização da Bolsa?

Passado o período de privatizações dos anos 90, passada a demanda por ajustes oportunísticos e conjunturais, as mudanças realizadas sobre as ações ordinárias perderam o sentido. A Bovespa viu uma oportunidade para trabalhar pela expansão do mercado. O que era até então uma arena de negócios de capital estatal, apenas com bancos e empresas privatizadas, poderia se tornar um projeto mais amplo, com sentido pró-inovação, pró-governança, com sentido pró-sociedade. Daí surge a proposta do ambiente autorregulado do Novo Mercado.

Poderia explicar como foi a evolução da governança das empresas privatizadas?

Naquele momento, os fundos de pensão tiveram papel importante. As fundações foram atores centrais nas privatizações tanto no campo da mineração quanto no das telecomunicações. A união dos fundos de pensão com os novos controladores privados que assumiram essas empresas criou uma demanda natural por governança e transparência. As fundações não eram os principais controladores, não tinham o poder final de mando, mas tinham uma demanda natural pela defesa dos direitos dos minoritários.

O que representou o surgimento do Novo Mercado?

O Novo Mercado é um ambiente autorregulado e representa um carimbo dado pela Bolsa para as empresas e ações que respeitam certas condições de governança. Para as companhias que tenham tag along, conselhos com minoritários etc. Então, a Bolsa aproveitou o desejo de empresas que passaram a ser privadas para emplacar maior governança em seu ambiente de negócios. O objetivo foi ampliar esse ambiente mais robusto para a atração de novos capitais para a Bolsa.

Como foi a evolução do Novo Mercado em seu período inicial?

Em 2003, o governo não realizou a guinada à esquerda que se imaginava. Ao contrário, a política econômica veio muito alinhada ao que tinha sido na gestão anterior do FHC. Basta lembrar que o principal formulador da política econômica do governo Lula foi o [Henrique] Meirelles. Além de ter sido executivo de um banco internacional, também havia sido do próprio PSDB. Então houve uma continuidade dos avanços em direção à transparência e boa governança.

Quais os principais fatos que incentivaram o desenvolvimento da Bolsa nesta época?

Na gestão do Meirelles, ocorre um incentivo ao desenvolvimento do mercado de capitais com algumas reformas microeconômicas. Em particular, merece destaque as mudanças no setor da construção civil, com a definição de regras para o patrimônio de afetação, segregação de balanços do projeto e da companhia, entre outras. E aconteceu algo semelhante em outros segmentos. Isso fez com que alguns setores pudessem fazer parte do ambiente do mercado de capitais. Tudo isso criou as condições para o boom da abertura de capital da janela entre 2003 e 2008.

Poderia dar alguns exemplos dessa fase de expansão da Bolsa?

Sim, várias grandes empresas entraram no mercado de capitais para aproveitar a oportunidade de parceria e desenvolvimento em seus projetos de expansão. Podemos citar as companhias aéreas, as locadoras de automóveis, as construtoras, os shoppings. Finalmente houve a mudança da composição do Ibovespa que desde os anos 90 tinha 60% do índice concentrado em meia dúzia de empresas estatais com pouca governança. Então surgiu uma nova Bolsa com líderes privados e empreendedores de diferentes segmentos. Por exemplo, com a Gol, Localiza, Natura, entre outras. 

Essa primeira safra de expansão de IPOs durou até quando?

Durou até a crise financeira de 2008, quando começou uma depuração natural da primeira safra. Naquela fase de aberturas de capital ocorridas entre 2003 e 2008, tivemos muitos pontos positivos e negativos ao mesmo tempo. Então, muita coisa quebrou pelo caminho. No setor de construção civil, por exemplo, meia dúzia de empresas evaporaram. Muitos bancos médios viraram pó. Ao mesmo tempo que temos hoje o Banco ABC, que é saudável e continua listado, bem sucedido, temos alguns bancos que desapareceram como o Cruzeiro do Sul ou o BicBanco. Temos por exemplo, a Cyrela como exemplo positivo, mas também tivemos a Inpar, Agra e Klabin Segall que quebraram.

Poderia explicar como foi a evolução do comportamento dos investidores?

Nesta fase acredito que fomos entrando em um período de maior amadurecimento do mercado. Acho que o investidor acumulou grande aprendizado. No momento anterior, o investidor tinha comprado de tudo, coisas pouco sérias e outras muito maduras. Agora, na janela atual, o investidor está muito mais seletivo, mais criterioso. Na safra atual temos algo que não havia na primeira safra de IPOs, que é a comparabilidade. Até 2005, por exemplo, não tinha nenhuma construtora com capital aberto em Bolsa.

Poderia explicar mais a possibilidade de comparabilidade?

Hoje temos mais de 20 construtoras. Então, é possível fazer o dever de casa, para ver aquelas que fazem sentido e outras que não fazem sentido. Outros exemplos são os bancos. Até pouco tempo atrás as principais referências eram os bancos públicos. Hoje não. Atualmente temos 12 bancos listados. É possível comparar os negócios do banco de atacado, do banco de varejo, aqueles com agência, outros sem agência. A comparabilidade permite navegar com muito mais segurança nas novas ofertas. Hoje empresas fracas ou amadoras, sem uma governança adequada, acabam tendo pouca receptividade.

Mesmo com toda evolução, ainda vemos casos de desrespeito aos direitos dos minoritários. Por que isso ainda acontece?

Mesmo com toda a evolução da Bolsa, começando com as estatais, passando pela entrada de grandes empresas privadas de destaque em seus setores, sempre se privilegiou historicamente os controladores das empresas e não os minoritários. No Brasil, de forma geral, os minoritários foram muito maltratados. Em geral, sempre se favoreceu a empresa como polo dos ativos. Nessa nova safra, com as consolidações acontecendo, ainda persistem atitudes grotescas dos empresários que tentam tirar vantagem do acionista minoritário.

Poderia dar algum exemplo?

Um caso prático é a questão de disfarçar o prêmio de controle. É o caso da Linx e Stone, em que surge uma proposta que privilegia um grupo de acionistas ao invés de repartir o prêmio do negócio com todos os demais sócios (acionistas). Então, o combate a esse tipo de atitude, tem a ver com o espírito original da Amec e do Novo Mercado. Uma ação, como uma fração do capital, deve ter direitos alinhados entre todos. Devemos buscar sempre o princípio de uma ação vale um voto. Por que a sua ação vale mais que a minha? O fato de um acionista ter o sobrenome na empresa faz com que sua ação valha mais que a minha? São atitudes que reaparecem em momentos como o atual.

Como avançar na prevenção ou resolução desse tipo de problemas?

Para solucionar esses conflitos, temos a própria atuação da Amec, o estabelecimento do carimbo do Novo Mercado, a criação do CAF [Comitê de Aquisições e Fusões], tudo isso, forma um conjunto de iniciativas privadas. Não são iniciativas do governo, do Estado. Acredito que falta avançar também com a legislação. A lei não andou, está atrasada. As artimanhas empresariais avançaram mais rápido que a regulação. Vemos atitudes do passado ressurgir com novas roupagens, com um figurino mais moderno.

Além da legislação e do enforcement, o que mais deveria mudar?

Também devemos continuar incentivando a mudança cultural. Este ponto é importante, principalmente da cultura dos novos executivos que são contratados. É uma nova visão que deve considerar os milhões de CPFs que investem na Bolsa, em uma empresa, para tratar de maneira equilibrada todos os acionistas.

E como fica o papel dos investidores institucionais?

Gostaria de destacar o papel dos fundos de pensão, que agora tem tudo para retomar a importância da atuação na governança das empresas. Como comentei, eles tiveram um papel muito relevante na virada dos anos 1990 para os anos 2000 como atores relevantes nas empresas privatizadas. Ajudaram na formação deste mercado mais complexo. Acredito que há muito espaço para que recuperem essa atuação agora.

Até mesmo porque as fundações estão ampliando suas alocações em Bolsa, não é mesmo?

Claro, para que as fundações tenham um portfólio mais diversificado, com mais ações, fundos imobiliários e dívidas corporativas, devem recuperar esse papel mais combativo. E os fundos de pensão estão se aproximando cada vez mais da Amec, que é o fórum mais relevante das proposições de governança no Brasil. Então é natural que todos os atores que estão interessados no avanço dessa pauta se articulem nesse fórum. É o mesmo caso que o meu, como gestor de investimentos que procuro uma maior transparência, maior demanda por lisura, na gestão de empresas, é idêntico de uma fundação. Como gestor, também sou representante de milhares de CPFs.