Entrevista Cristiana Pereira: Nem todas as empresas estarão preparadas para o IPO

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A retomada do movimento de IPOs (abertura de capital) impulsionada para queda dos juros e forte apetite dos investidores domésticos está provocando uma aceleração na preparação das empresas. “Vemos muitas empresas acelerando seus processos. Nem todas estão preparadas do ponto de vista de governança”, diz Cristiana Pereira, Sócia da Consultoria ACE Governance, em entrevista exclusiva ao Panorama Amec.

Ex-Diretora da B3 e conselheira de diversas companhias, a especialista considera o movimento de preparação acelerada aceitável, mesmo que se satisfaça apenas o nível formal em um primeiro momento, para depois de um ano ou um ano e meio, promover o funcionamento de fato das novas estruturas.

Na entrevista, Cristiana fala sobre seu posicionamento em temas atuais relevantes como o voto plural e a importância do bom funcionamento do Conselho Fiscal das companhias. Ela fala ainda sobre a importância da articulação dos investidores e da manifestação pública em casos de conflitos de interesses surgidos em processos de reestruturação societária. Confira a entrevista a seguir:

Quais os fatores que estão impulsionando a retomada do movimento de IPOs na Bolsa?

Cristiana Pereira. Foto: Divulgação.

O que está sendo determinante para este momento é a redução da taxa de juros. As empresas estão acelerando para se preparar em termos de governança, para acessar o mercado. O que surpreende nesse momento é o forte apetite dos investimentos brasileiros. Nessa retomada, vemos uma participação muito maior dos investidores domésticos que dos estrangeiros. O que é bem diferente de outros momentos do passado.

O nível de governança das empresas está adequado para a abertura de capital?

Vemos muitas empresas acelerando seus processos. Nem todas estão preparadas do ponto de vista de governança. Em um mercado favorável, muitas delas estão antecipando seus planos. É preciso avançar com toda a preparação em termos de conselhos, de políticas, regimentos, organização interna. Isso acaba sendo feito de maneira mais apressada.

Quais as principais deficiências das empresas?

Um desafio grande para as empresas fechadas que pretendem realizar o IPO é a estruturação da parte contábil e financeira a ponto de entregar os demonstrativos financeiros nos prazos e condições exigidas. Além disso, tem toda a estruturação do conselho, com uma parte de independentes, já que a maioria vai para o Novo Mercado. Muitas empresas vão para o IPO com um conselho recém formado, que carece de integração.

Poderia explicar as políticas exigidas recentemente pelo Novo Mercado para a abertura de capital?

As regras do Novo Mercado agora exigem que as empresas tenham uma série de políticas, como por exemplo, de transações com partes relacionadas, de gerenciamento de riscos, de indicação, remuneração, entre outras. E todas essas políticas passam pela aprovação do conselho, mas também demandam sua implementação. E tem um capítulo recente do Novo Mercado que tem a ver com fiscalização e controle, que é a auditoria interna, área de compliance, gerenciamento de riscos. Isso tudo representa um desafio.

E dá tempo para fazer tudo isso?

Muitas empresas estão tentando implantar toda essa estrutura no nível formal, mas vão fazer funcionar de fato ao longo do caminho. Isso é perfeitamente aceitável, que se estabeleça os procedimentos formais e depois ao longo de um ano ou um ano e meio, terão de fazer funcionar na prática. O que temos de avaliar depois é se realmente estarão funcionando de fato.

Poderia destacar as principais evoluções recentes das regras do Novo Mercado?

Na última revisão do Novo Mercado, que entrou em vigor em 2018, na verdade ainda não está 100% implementada porque as empresas já listadas têm até 2022 para atender as exigências. Então, ainda não é possível avaliar o impacto desta nova regulação. Mas uma parte importante é o capítulo da fiscalização e controle. Por exemplo, o comitê de auditoria, que é uma novidade, a auditoria interna, a política de gerenciamento de risco, entre outras.

Qual a sua opinião sobre a proposta de substituição do Conselho Fiscal pelo comitê de auditoria que é analisado e discutido no âmbito do Ministério da Economia?

Não conheço a fundo os detalhes da proposta. Houve uma revisão das regras do Novo Mercado em 2011 que não foi aprovada a exigência do Comitê de Auditoria como uma regra porque justamente as empresas e os participantes do mercado entendiam que o Conselho fiscal já cumpria esse papel. Pessoalmente acho que são órgãos diferentes. Um deles é interno e faz parte da administração, assessora o Conselho de Administração que é o Comitê de Auditoria. O outro é o Conselho Fiscal, que pode existir ou não, depende da demanda dos acionistas.

Poderia explicar melhor a sua visão sobre o Conselho Fiscal?

Já ouvi muito dizer que os estrangeiros não entendem esse órgão, mas eu tenho uma visão diferente. Entendo que algumas empresas, dependendo do tamanho e da complexidade, devem manter um Conselho Fiscal sempre, além é claro de estruturas de auditoria, controles internos, compliance. O Conselho Fiscal acaba sendo uma instância dos acionistas separada da administração. Não acho que se deve tirar esse direito dos acionistas da Lei das S.A. O que se tem de buscar é que ele funcione de uma maneira mais eficiente.

Como analisa a questão da implantação do voto plural no mercado brasileiro?

O que justificaria ter essa figura no Brasil é para atender empresas em que a figura do controlador, fundador, ou grupo original, seja muito importante para a continuidade da empresa. Somado a isso, hoje as empresas começam a se financiar no mercado muito cedo, com rodadas de investidores-anjo, seed money, venture capital, private equity. Quando chega no momento do IPO, esse empreendedor do grupo original fica muito diluído, mas continua relevante para a companhia. Então, o mecanismo do voto plural atende essa nova realidade das empresas de tecnologia, os chamados unicórnios. Então, lá fora, o voto plural é muito importante, mas tendo dito isso, a realidade do mercado brasileiro é diferente.

Se o voto plural for implantando no Brasil, quais deveriam ser os limites e especificidades?

Acho que deve ter uma série de salvaguardas e limites. Nos EUA, existe uma modelo totalmente flexível, que a empresa adota o que ela quiser, se tiver aceitação no mercado, ela vai adiante. No Brasil, não acho que estamos preparados para ter toda essa flexibilidade. Daí acho importante pensar em alguns limites. Um deles é o limite de quantidade, de proporção. Também se deve limitar quem detém essa ação. Nos EUA não há muitas restrições, por exemplo, o poder da ação pode passar para os herdeiros, para se perpetuar para sempre. Aqui deve ser mais limitado para um empreendedor ou um grupo relevante para a companhia, sem passar para os herdeiros.

Você acha importante definir um prazo de validade para a vigência do sistema de voto plural para uma companhia?

É importante contar com um prazo máximo, porque é provado com estudos que esse modelo perde eficácia depois de um certo tempo. Acho que um prazo entre 7 a 10 anos é algo razoável.

O que deveria mudar na legislação com a introdução do voto plural?

Será necessário adaptar os demais mecanismos de proteção dos acionistas na lei. Por exemplo, direito de indicar membros para os conselhos. É um direito que foi pensado para uma estrutura só de ordinárias, ou de preferenciais e ordinárias. Se introduzir o voto plural, todos os quóruns e limites de aprovação devem ser adaptados. Os direitos devem ser mantidos. Outros institutos devem ser reforçados como a independência dos conselhos, o comitê de auditoria, todos esses instrumentos de fiscalização e controle devem estar fortalecidos para que na nova estrutura não ocorram abusos. E independente do voto plural, temos de reforçar o lado do enforcement.

Como avançar na questão do enforcement para melhorar a proteção dos acionistas?

Realmente podemos nos perguntar, o que mais precisa melhorar na regulação ou na legislação? Não sei se precisamos de mais instrumentos ou mais regras. O Novo Mercado acabou de mudar seu regulamento. Acho que o esforço é o de identificar algum abuso ou desvio, quais são as consequências. Como fiscalizar? Não é muito a minha área de atuação, mas é um lado ainda frágil. Estamos em um momento que várias empresas estão passando por desafios por causa da pandemia e da recessão. Estão aumentando os processos de fusão e aquisição de companhias, seja por motivos de crise ou crescimento. E nesses processos sempre há uma tentação de acelerar os passos e eventualmente desrespeitar o direito dos minoritários. 

E como resolver esses problemas, esses conflitos?

Acho que é o caso dos investidores estarem atentos. Alguns casos recentes que vimos, foi preciso uma reação dos investidores de sinalizar: “olha aqui está passando do limite”. A partir disso, algumas empresas reagem com mudanças. Se pensarmos no caso de Linx Stone, os investidores gritaram: “isso aqui não é aceitável”. Nem estou avaliando o mérito da proposta. Isso fez com que as empresas se mexessem para mudar a proposta. Acho que isso é muito importante. Precisamos ter uma voz atenta e ativa, para se manifestar de maneira enfática para que as transações se ajustem.

Então, você acredita que a saída passa pelas manifestações e articulações dos investidores?

Acho que os investidores devem se manifestar publicamente. Neste ponto a Amec tem um papel fundamental. É um canal mais institucional, com mais peso, além das manifestações individuais, para forçar uma reflexão. Eventualmente isso já pode resolver ou amenizar um problema. Tem uma repercussão negativa, tem um impacto em uma aprovação em uma assembleia, para forçar uma revisão de um acordo ou processo de reestruturação. Mas se isso não for suficiente, daí tem de acionar os reguladores, Bolsa, CVM, que está mais forte. A CVM melhorou muito nesta questão do enforcement.

Poderia avaliar a evolução dos temas ESG nas empresas e no mercado?

Existe uma demanda da sociedade por uma ação mais ativa em relação ao socioambiental. Isso será cada vez mais importante. Isso deve estar cada vez mais presente no planejamento estratégico, na discussão da matriz de risco das companhias. Teremos maior impacto dos fenômenos climáticos. Teremos mais questões sociais pressionando, como lidar com os stakeholders em geral. Não basta apenas divulgar um relatório bonitinho e achar que isso é suficiente. Os investidores serão cada vez mais incisivos.

E a questão da diversidade nos Conselhos, qual a sua opinião?

Em relação à diversidade, é um caminho sem volta. A demanda é crescente, não apenas a de gênero, mas em todos os sentidos, de etnia, de formação, de background. E aí não basta colocar no Conselho uma mulher, um negro, uma pessoa da tecnologia, e achar que está fazendo a sua parte. Acho que a composição do Conselho deve ser avaliada de uma maneira mais profunda, ampliando as possibilidades para os espaços de busca. Precisamos profissionalizar esses processos de seleção.

Qual o perfil do Conselho de Administração para o cenário atual?

Com a pandemia, houve uma intensificação da atuação dos conselhos. Houve a formação dos comitês de crise, gestão de caixa, de situações emergenciais. Agora devemos voltar mas acho que os conselhos devem ser cada vez mais ativos. Isso é uma demanda cada vez maior dos investidores. Esse é o ponto que mais se precisa evoluir, dando mais visibilidade à atuação do Conselho. É preciso divulgar mais informações, sem necessariamente tocar em temas estratégicos. É necessário comunicar mais para deixar claro como estão atuando.

Poderia comentar um pouco a diferença da atuação dos Conselhos lá fora e aqui no Brasil?

Lá fora tem um papel mais ativo dos conselheiros para permitir maior engajamento dos investidores. Aqui no Brasil ainda tem muito receio na divulgação de informações, no descumprimento de regras da CVM. Mas é preciso avançar para dar maior visibilidade às atividades do Conselho. O Conselho é o ponto de articulação dos interesses dos investidores.